domingo, novembro 23, 2008

Vaso

Alguns sujeitos têm mente aberta
No centro de seu crânio, um buraco
De urânio, pronto para explodir e implodir.

Mas outros são vasos,
Nada escassos, guardam objetos,
Às vezes dentro do formato estético,
Às vezes dentro do uniforme patético,
Mas sempre vasos, espaço
Vazio ou preenchido.

Saudade de poetar

Largar a caneta, a linha e a cabeça
No mundo dos macacos, das criaturas nos cantos,
Dos encantos e das idéias em sacos.

Soltar a decepção com o próprio desempenho,
Arrebentar as amarras do formato ou do pensamento
Livre em pleno descaso, focar o ato, o lado produtivo,
A arte do riso.

Saudade de poesia e de poetar,
Como no pomar das notas
Livres a cantar,
Saudade de lirismo e de amar
O seu riso em meu ciso,
Como uma presa decorativa,
Atração reativa.

Poete, poete este verso,
Repete os nomes do velho
Universo perdido, um ninho
No ópio do seu tédio, pronto
Para o nascimento.

Discursos

Um pensa que sabe muito, fala firme,
Faz de tudo.

Um pensa que a vida está uma maravilha,
Vive a milhas de distância da trilha.

Um não sabe de tudo, mas tem discurso bruto,
Revolucionário inculto.

Vários podem ser assim, acidentes de retórica,
Comodismo e história.

Um balbucia palavras, sussura idéia pouco explorada
Para um público em franca decadência, cego e na demência.

domingo, novembro 16, 2008

Colegas

Brincávamos no parque, cercados, armados
De inexperiência, preconceituosos ociosos,
Crianças na ciranda da vida e do insosso.

Colégio interno, régio contato,
Fictício laço, maço de cigarro
E entorpecimento.

Vejo barcos afundarem
Nas cirandas, vejo andarem
Sobre o cadáver de quem
Desistiu, de quem regrediu.

Colegas partem do parque,
Da vontade, da vida em cheque,
Colegas partem do tempo
E do professor possesso, do proceso.

Colegas são um constante devir,
Um mártir do magnífico sentir-se
Solidário, visionário, retardado
Diante do estranho,
Solitário.

Bossa velha

Um violão e voz
Em um calor atroz
Nas ondas de Copacabana,
Em nossa copa, você me abana.

60 anos de
Um violão e uma voz,
E chega de saudade,
Chega da saúde,
Chega, chega
Na foz do rio e desagua
Nos mares, entre os seres.

sábado, novembro 08, 2008

A subversão culpada

Já afirmara o escritor argentino Alberto Manguel, em Uma história da leitura, que Um livro traz sua própria história ao leitor. É este o sentimento que fica ao término da leitura das dez narrativas presentes em A culpa é do livro (Design Editora, 2008), do escritor, também argentino, Gabriel Gómez. Um sentimento já expressado por Marisa Lajolo, de que Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando. Cada leitor tem a história de suas leituras, cada texto, a história das suas.
Dez narrativas. Abrindo cada narrativa, uma epígrafe escolhida a dedo, cuidadosamente, que seduz o leitor para aquilo que virá nas próximas páginas, as dez personagens-leitoras. Cada uma com uma história muito própria com relação a algum livro. A culpa é sempre do livro. A culpa pelo bilhete perdido, pelo desejo incomum de devorar os livros cheirando-os, pela solidão e loucura provocadas por uma ausência de livros. A culpa pela busca do nada. A culpa pela exaltação da inutilidade. As melhores coisas da vida não servem para nada, e nem precisam. Construir junto a algum livro uma história própria é algo maravilhosamente inútil feito por cada personagem-leitora do livro de Gómez.
Inutilidade esta representadora de um ato subversivo. Talvez o ato mais subversivo dos dias de hoje. Mergulhar na história de um livro, abraçar este livro, torná-lo algo inerente a si, e, principalmente, deixar claro o desligamento das coisas mundanas no momento em que se lê tal livro, são ações que assustam e que incomodam muito a quem não as vivencia. É o sujeito-leitor, hoje em dia, o maior revolucionário, aquele que se incorpora a um livro para engendrar-se na vida.
Livros, sozinhos, não fazem ruídos. Acumulam pó. Livros são exigentes. Para movê-los, para extrair deles algum som possível, exige-se grande esforço. Ser leitor é colocar-se à disposição deste esforço. É o leitor o ingrediente fundamental de uma história. Um leitor perspicaz, sensível ao que existe ao seu redor. Um leitor que trata a leitura como interação com o mundo e consigo mesmo. Um leitor corajoso, que a todo o momento se vê diante de escolhas a fazer, que vive sempre uma batalha em busca de algum sentido. Um leitor de livros errantes, que sente demais o medo de passar um livro para a frente.
Estes sujeitos-leitores presentes em A culpa é do livro representam também o leitor trazido por Piglia, em O último leitor. O leitor extremo, sempre apaixonado e compulsivo; viciado, que não consegue deixar de ler, insone, sempre desperto, para quem a leitura é uma forma de vida, para quem a literatura dá um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica. São, estes sujeitos-leitores, os últimos leitores, aqueles leitores em busca do sentido experiência perdida, que dão à literatura uma utilidade inimaginável. Que dão ao livro uma vida transformadora.

Trecho do livro:

“Quando voltei a ler a frase daquele poema, lembrei-me, surpreso, que existia um bilhete dentro de algum livro da minha biblioteca, guardado propositadamente para que eu pudesse ler, muito tempo depois. Minha mente tinha aparentemente criado um bloqueio em relação àquele pedaço de papel e, após todos estes anos em que nem sequer me lembrava de sua existência, fiquei curioso pelo seu conteúdo. Mal sabia onde poderia estar escondido, depois de anos, e nem o que ele dizia.
Talvez algumas pessoas saibam a minha idade, aparência e profissão (muitas vezes tentei não mentir!), mas todos esses dados não me descreveriam por completo. Os livros, eles sim, conseguem me expor como um espelho sem máscaras, embora com algumas vírgulas e reticências. E pelo que lembrei agora, também por alguma ou outra história incompleta contada em algum bilhete esquecido entre suas páginas.
Minha biblioteca abriga diversos volumes, de várias gerações. É verdade que ela já não é tão completa, mas ainda restam aqueles de amor secreto. Não sei quantos deles só abri para folhear e quantos li, de fato. Cultivei o ato da leitura sabendo que nenhum livro é o primeiro, e nenhum é o último. Sempre percebi que formar uma biblioteca é um ato de criação; assim, como considero livros o principal instrumento da imaginação, não os leio tentando aprisionar o superficial. Todos esses livros são, para mim, companheiros vivos, que sorriem, choram, abusam, formam, acalentam, respiram. Minha surrada colcha de retalhos literários. Convivem pacificamente entre novos e velhos, lidos e esquecidos, clássicos e anônimos e valem pela satisfação que provocam em quem os têm nas mãos. Eu os sinto todos ligados a mim por laços invisíveis e remotos”. (do conto O bilhete perdido, pp. 24-25).
Í.ta**