quarta-feira, dezembro 31, 2008

Intersecção

Faz-se todos os dias,
Mas hoje segue o ritual,
A receita matinal
E a cozinha, que é o homem.

Faz-se todos os dias
A mesma travessia,
O universo interseccionado,
A vida transvestida
Nas fantasias, fico fascinado.

Faz-se todos os dias,
Mas hoje é fim de ano,
Quero um beijo
Na boca,
Pois é um ânimo!

sábado, dezembro 27, 2008

A palavra, quando vibra

O corpo conjuga o verbo palavra
(Viviane Mosé, Toda palavra, p. 30).

Encarei outro livro de Viviane Mosé. Toda palavra. Mais um soco. Na boca. Na boca por onde sai a palavra. De onde ela sai esmagada, estrangulada. Não degustada, mas remoída: “Palavra nasce no corpo. / (...) Palavra precisa de adubo de passarinho”. Conforme o dito na orelha do livro, por Chacal, "Viviane tem um caso com as palavras, na medida do impossível, um caso muito bem resolvido".
E, ao lê-la, quem acaba estreitando um caso mais profundo com as palavras, é o leitor. Se bem ou mal resolvido esse caso, depende de cada leitor. No meu caso, na medida do possível, mal resolvido. Ou melhor, nunca resolvido.
Pensar a palavra nunca deverá ser solução para algo. Estrangular a palavra é saída. É fuga. Fazê-la vibrar dentro de nós é o que nos resta. Sentir a vida através dela. Para daí sentir nossa própria vida. Não há mais o que se fazer.
E é isso que Viviane desanda a fazer em Toda palavra. Com a epígrafe de Arthur Bispo do Rosário, “Eu preciso dessas palavras. Escrita”, tem início o livro. A partir daí, há todo um desenrolar de palavras em linhas curvas. Em linhas com desníveis. Em linhas entrecortadas por facas: “O adubo de palavras mortas prepara palavras novas / (...) Uma palavra limpa é uma palavra possível”. É preciso lavar a palavra suja. Sem esquecer de que “Palavra não serve pra escrever cartas de amor. / Nem pra falar ao telefone. / Palavra não serve pra chorar. / Palavra só serve pra fazer poemas”.
Viviane diz procurar “uma palavra que me salve”. Eu também. Achá-la? Prefiro que não. Para em nenhum momento deixar de continuar procurando-a. Porque procurar por uma palavra que salve é alimento diário. É fuga e é sustentação. É contradição. É vida. Para isso, versa Viviane, “Toda palavra deve ser anunciada e ouvida”.
“Quem escreve escava / O que o silêncio palavra”. O silêncio palavra, sim. Palavra é verbo também: “Os verbos são duros por isso o abraço ao samba”. Palavrar é unir o distante: “Amor são palavras cruzadas”. É aproximar o que não se bica. É recriar sentidos. É vida, outra vez: “De todas as palavras que trago gravadas na pele / Amor é a que me assalta de madrugada. / O amor tem fome, muita fome. / Meu corpo são bocas abertas. / A madrugada me atravessa”.
Porém, ressalta Viviane, “(...) a palavra não sabe o que diz / (...) A verdade é que a palavra, ela mesma, em si própria, não diz nada. / Quem diz é o acordo estabelecido entre quem fala / e quem ouve”. A palavra é roupa que vestimos. E com quais palavras nos despimos, pergunta a autora? Eu, assim como Viviane, “Escorro entre palavras, como quem navega um barco / sem remo. Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio”. Não me basta. Nunca me bastará. Mas não vivo sem. Sentar na calçada e virar a vida do avesso: “A vida ao avesso não tem fundo nem fim”.

í.ta**

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Sobre o nome

Era estranho. Desde a idade mais remota que me recordo, esse nome sempre foi esquisito. Mamãe sempre dizia que ela era chamada assim na escola, porque era do pai dela. Papai ria do fato dela ter essa palavrinha peculiar e isso foi mesa de discussões entre muitos amigos.

“Como assim italiano?” perguntavam algumas pessoas, com um ar de indignação moderado. E é sim. Italiano de Segunda Guerra Mundial, apenas um parentesco acima de minha mãe, na ordem cronológica. Não é uma descendência muito “alongada”, se é que me entendem, tipo coisa de bisneto. Mas o fato é que o nome marcou a minha vida toda. Causa risadas e algumas confusões. Acho que algumas pessoas o acham ridículo.

O fato é: determinado ano, uma senhorinha um tanto reprimida, coisa freudiana mesmo, resolveu me chamar o tempo inteiro por essa palavra. E ela não era qualquer senhorazinha, pois ela dava aulas tediosas que eu era obrigado a suportar durante um ano. Para mim, na sala de aula sempre se absorve alguma coisa, mas, ao ouvir aquele ser vociferar como se o nome fosse algo bizarro, eu realmente ficava um tanto quanto incomodado, e rancoroso, talvez.

Mas, como é coisa pra vida toda, que eu não pretendia mudar em cartório, fiquei de bico fechado. Talvez tenha dito pra ela uma ou duas vezes o que havia de errado com a bendita palavra. Mas ficou por isso.

A mulher falou tanto naquela palavra, mas tanto, que eu acabei até gostando dela.

Virou meu diferencial, meu nome único, superior.

No entanto, ainda causa risos. Sempre causará. Meu chefe não sabe falar essa palavra, e não parece querer saber. Meu irmão reduz a palavra pra virar apelido. Minha namorada dificilmente pronuncia.

Ao contrário da maioria das palavras italianas, esse sobrenome não é nada famoso.

Pedro Zambarda de Araújo
22/12/2008

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Erro de Português

Não seria a gramática
Regra dramática,
Pois teme a desgraça
Da tragédia e da falácia?

Não seria o sintaxe
A padronização e o encaixe,
Da falta de criatividade?

Não seria a concordância
Uma mera discordância
Dos ligamentos dos termos,
Do silêncio tenro
De meu desejo?

Se não são nada disso, eu sou o erro,
A sedução do descuido, o esmero
Vagabundo, o desespero.

Ou talvez seja apenas um errinho
Que a borracha pune, que se cobre
Com "branquinho".

Nunca morre

Poema nunca morre, poema nunca dorme, poesia sempre escorre, poeta sempre dorme, poema sempre insiste, poesia nunca persiste, poesia e superfície, poema do dilema, que o fonema causa no verso, poesia no passo, poema no estático, poeta suicida, poema homicida.

Nunca morre, corre muito, torce a palavra, contorce significado, predicado, espaço, poesia é expressão, poema é a extensão, termos usados à exaustão.

sábado, dezembro 13, 2008

Sujeito e Predicado

Inocência de criança era a que esperava inquieta.
Apertava os olhos para enxergar melhor o final da rua, algum sinal dos comboios que faziam o percurso centro-interbairros. Um transeunte conhecido mascava chiclete.
A boca que mastigava, escancarada, atraía as pupilas que levemente reconheciam um rosto familiar. Ruidosamente, o transporte estacionava com um trinado estranho, sobressaltaram-se os presentes. Embarcou.

O aniversário da vovó. Ela sempre gostou de doces. Ultimamente, não podia levar nem uma balinha de anis à boca. Sofrendo de várias "Ites", incluindo uma tal de diverticulite, seu leque alimentar restringia-se a suquinhos de soja, arroz, feijão e chuchu, todos processados no liqüidificador. Um iogurte de vez em quando era saudável, dizia minha tia.
A família e a sua bagunça de sempre. Cansado de correr atrás dos primos, espiei pelo muro os vizinhos que também estavam em uma reunião de família. Ela se achava lá. Quem eram os vizinhos? Eu a conhecia de algum lugar. Algum lugar... Que sensação chata.

A ponte. Observara de longe, a pessoa acompanhada de amigos loquazes. Óculos escuros. Chiclete ruidoso. Erguera os olhos. Não acreditara até dobrar uma esquina. Amaldiçoara a ponte.

A rua de casa. Lar doce lar. Invadido por aliens. Reminiscências? Hama-mu?
Enlouquecia. Bufava. Sorria.
Eu a tinha visto, em um ponto de ônibus diferente.
Óculos escuros e chiclete escancarado. Eu havia me lembrado.
De que conhecia aquela pessoa de algum lugar.

Entre um evento e outro, anos haviam se passado. Anos e anos. Vivendo e vendo. A outra pessoa. Não se aproximara, sequer acenara. Limitara-se a observar.
Imensa interrogação. Inquietação, angústia.

Na faina da escada rolante, logrado os destinos, se é que existiam, tão particularmente obtusos. Um subia e o outro descia. 180 graus. Incredulidade.

No mesmo dia, em um banquinho de praça, degustando um saudável sanduiche. Estendeu a mão, e foi em um terno aperto de mão que a voz se fez ouvir.

- Tudo bem?
- É, tudo.

Virei-lhe as costas.

Costumo visitar o mesmo lugar, raso de lembranças. Ainda esperando um olhar.

domingo, dezembro 07, 2008

abraçar o sol sob um pé de cebolinha

Era amante da palavra palavra. Não gostava de pedra, não gostava de árvore, não gostava de asfalto. Palavras feias, dizia. Duras como o próprio material a que se referiam. Gostava de sono, desta sim. Gostava do som dela. Gostava de noite e de nuvem (esta parecia que o chamava sempre que alguém a pronunciava).
Chuva ele sentia lhe sorrir quando a ouvia. Uma relação bastante íntima, de cumplicidade. Arco-íris também podia dizer que escancarava o sorriso a ele quando a encontrava. Neste caso, muito em função do próprio formato que o arco-íris adquire no céu, confessava. Diferentemente de mar, por exemplo, que, enquanto elemento da natureza, era apaixonado por, achava-o belo e sincero, mas, enquanto palavra, não lhe transpirava a mínima confiança e simpatia, dando-lhe a impressão de gritar sempre que falava.
Tinha que tomar muito cuidado para não sentir pela palavra o que seu significado apresentava, sabia disso. Mas com algumas palavras não conseguia dissociar esse gostar delas como estrutura do que elas significavam ou representavam. Vento, por exemplo, era palavra livre, leve e solta, tal qual o próprio vento era-lhe. Já madeira era palavra intransponível. Seca, fria, nem ousava mais se aproximar dela.
Não tinha lá muito apego a palavras que eram verbos. Pareciam-lhe sempre irritadiças, incomodadas com algo. Evitava pensar nelas. Preferia ir à procura de palavras mais leves, como azul e travesseiro. Amava viajar na pronúncia de travesseiro. Muito melhor do que dizer cobertor ou escuro; palavras carrancudas estas, afirmava. Linguagem era palavra suave, apaziguadora. Sempre disposta a lhe dar um minuto de atenção que fosse. Parecia-lhe a “mãe de todas”.
Mas era com a palavra palavra que mantinha uma relação secreta e inebriante. Viviam uma paixão escondida, da qual ninguém desconfiava, nem jamais soubera. Sabiam guardar segredo, sabiam respeitar a privacidade de cada um, sabiam quando era hora de se ver novamente. Aprenderam juntos a empinar pipa em cima de nuvens, a abraçar o sol sob um pé de cebolinha, a roçar os telhados do prédio mais largo da cidade, e não pararam de saltar do alto de um formigueiro ao encontro do sol à meia-noite. Viveram explorando ao máximo os subterfúgios que só mesmo a palavra podia oferecer quando bem tratada por alguém. Era ali que se encontravam. Era ali que a paixão existia. Por ali é que estas linhas foram escritas.
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um dos contos meus presente no livro "peças íntimas",
da coleção "cadernos de autoria" do SESC.
este livro será lançado nesta terça-feira,
09.12, em jaraguá do sul. mais detalhes sobre,
í.ta**